Às vezes, tenho a impressão de que o universo privou minha alma de enxergar as coisas belas da vida e condenou-me a uma vida medíocre e catastrófica. Na real, eu nem deveria ter nascido, mas enfim! Cá estou eu.

Minha tragédia começou muito cedo, já quando nasci, deram-me o pior nome que alguém como eu poderia ter: “Allegra”. Que nome ridículo e patético! Nem lembro a última vez que senti alegria, por isso odeio que me chamem assim, prefiro apenas “Ale”. No entanto, por mais que eu tente evitar, é incrível, como todas as pessoas nessa porcaria de mundo estão sempre tentando me irritar, e pior, eles sempre conseguem.

 

 

***

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Senhorita Allegra, senhorita Allegra! Enfim chegamos à casa de seu avô!

— Me chame apenas de Ale, será que é tão difícil assim? — resmungou a garota, visivelmente chateada após horas de viagem numa estrada de chão batido que contornava um enorme rio. Enfim, o veículo rebocando a velha Kombi, herança de sua falecida mãe, chegava ao local que ela tanto temia.

Enquanto o céu desabava numa chuva torrencial, a garota transpirava pelas mãos. Guardou seu diário numa de suas mochilas e por alguns instantes ficou observando aquela estranha casa que talvez, seria seu novo lar, ou prisão.

—   Vou descer e conferir se o seu avô está! — exclamou o assistente social.

—   Tanta gente boa morrendo e este infeliz ainda vive! — resmungou a garota sob o olhar incrédulo do homem que logo a censurou.

—   Você precisa se ajudar! Sabe muito bem que ele é sua última chance!

—   É muita ironia do destino, você não acha? Esse monstro nunca quis saber de nós, nem sequer apareceu no velório da própria filha, e agora, eu apareço aqui rastejando e pedindo ajuda?

—   Sei que parece horrível, mas pense no lado bom! Em breve você completará dezoito anos! E lembre-se, sua bolsa de estudos na Europa pode ser cancelada caso você não tenha residência fixa e família no Brasil.  Adolescentes de orfanato não são aceitos neste programa, você entendeu Allegra? Se quiser ser livre e realizar seu sonho, tem que passar por essa prova de fogo!

Com os olhos vermelhos de raiva, a garota quis explodir, mas conteve-se. Em seguida, o homem de terno e gravata deixou o veículo, armou seu guarda-chuva e dirigiu-se à residência, por um minuto olhou ao redor, e tudo que pôde ver foram imensos e intermináveis campos de pastagens e apenas uma casa no meio do nada. Finalmente bateu à porta.

No interior do veículo, Allegra observava pela primeira vez o seu avô, um senhor de cabelos grisalhos, talvez sessenta anos, roupas surradas, cabelos esvoaçados e uma aparência razoavelmente pacata. Contudo, após receber a notícia, ficou surpreso e arredio, gesticulava e balançava a cabeça de forma negativa tentando convencer o homem que seria impossível assumir aquela garota.

Transtornada, ela, num acesso de fúria, bateu a porta do carro com enorme violência e como um trem desgovernado partiu para cima do avô aos gritos.

—  Seu maldito boçal de uma figa! Ela morreu nos meus braços e onde você estava? Eu te odeio! Eu te odeio! — gritava a garota. Suas lágrimas misturavam-se com a forte chuva que encharcou seu corpo, enquanto sua voz furiosa, confundia-se com o som dos trovões aterradores.

Por sua vez, o avô ficou em silêncio, seus olhos pareciam ver uma miragem. A garota, porém, parecia em transe, enquanto chorava e gritava toda sorte de insultos.

Ainda assim, algo inesperado ocorreu.

—  Eu mudei de ideia, ela pode ficar! — exclamou o avô, com olhar ainda confuso ao passo que Allegra de imediato congelou.